“À noite, todo gato é pardo”
- Carolina Maingué
- 20 de jul. de 2016
- 10 min de leitura
A vida de uma travesti que, como 90% das mulheres trans, encara as ruas para se prostituir por falta de oportunidade no mercado de trabalho

Foto: Luara Loth. Ilustrativa
O centro urbano de Florianópolis pode parecer deserto, à primeira vista, num sábado depois da meia noite. Mas entre os jovens que, esporadicamente, desfilam para as festas com garrafas de vinho barato na mão, prostitutas habitam as esquinas com seus batons fortes e suas pernas de fora - mesmo num frio de menos de 15ºC, como o que fazia quando conversei com Fabi.
Pra esquerda do Terminal de Integração de ônibus, ziguezagueando entre as ruelas de paredes pixadas e grafitadas, a primeira moça fazia um movimento de descer até o chão empinando a bunda. "Moça, quanto você cobra a hora?", perguntei, e de resposta recebi um olhar que dizia "menina, volta pra cama ou pra balada de gente da sua idade". Ela esperava um cliente e eu podia atrapalhar se continuasse lá perto, fui avisada. Então segui meu caminho.
"Oi, eu faço jornalismo na UFSC..." e a segunda moça me respondeu "olha, não quero falar, não". Insisti e a mulher berrou para duas outras prostitutas que estavam vindo do posto de gasolina ali perto: "Ô, Fabi! Vem cá, tem uma menina que vai gostar de conversar com você". E não é que a moça que não queria falar estava certa?
Fabrizia de Souza Felipe usava um vestido preto brilhante e, diferente da maioria de suas colegas, tinha o corpo relativamente coberto para não passar frio. De cabelos castanhos, lisos, aparelho nos dentes e uma voz rouca cujo timbre, vez ou outra, parecia cintilar igual à sombra preta com glitter que ela usava, Fabi me contou que fazia Letras Alemão na mesma universidade que eu - foi o primeiro choque; afinal, dentro da realidade de uma maioria branca, classe média e cisgênera nos cursos de graduação, são poucos os que imaginam que vida as travestis e mulheres trans passam para sobreviver no mundo real.
De acordo com o relatório de 2014 da ONG Internacional Transgender Europe, o Brasil é o país onde mais ocorrem assassinatos de trans e travestis. E segundo a Associação de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% dessas pessoas que se identificam com o gênero feminino estão em situação de prostituição.
Na UFSC, foi aprovada, em agosto de 2015, uma resolução que prevê o uso do nome social em todos os documentos e atos acadêmicos - antes disso, o diploma de conclusão de curso continha o nome de nascimento e o regimento não era claro quanto à utilização de banheiros públicos, os quais trans lutavam para utilizar independente do gênero com o qual foram designados ao nascer.
Quando iniciou seu processo de transição para o feminino, Fabrizia foi demitida do salão de beleza onde trabalhava. Após outros empregos formais impedirem sua entrada no mercado de trabalho, a mulher acabou na rua - que não possui porta para ser fechada. Sobre a sujeira do asfalto e as calçadas quebradiças do centro da cidade, ela diz ter crescido muito. “Aprendi, principalmente, a questão do homem. Que o homem, pra mim, a gente vê que, na rua mesmo, eles são todos iguais, só muda mesmo o endereço“.
Ao lado de Fabrizia, parou Cafe, loira de cabelos compridos, com a saia curta e a boca rosa choque. “Vai gravar e tudo?”, Cafe perguntou quando tirei o celular da bolsa pra registrar o que Fabi ia me contar. Eu gravei e tudo o relato de uma travesti cujas marcas de um mundo manchado de preconceito e discriminação não a impediram de falar com um sorriso e uma simpatia que não é todo mundo que tem.
Essa pessoa, que transgride o socialmente aceito e diz gostar “do mais baixo, do mais perverso”, foi também uma das mais gentis que eu já conheci. Da doçura que transpassava sua voz, restou em mim o gosto amargo de tentar decifrar uma sociedade tão excludente - e qual a minha parcela de culpa neste processo. O jornalismo, muitas vezes, nos coloca frente a frente com histórias tristes. Triste mesmo, hoje penso eu, é quando alguém deve à sorte poder continuar a sua história. Eis um pedaço da de Fabi:
Você gosta de ser prostituta?
Quando não é uma obrigação, sim.
Quando não é obrigação?
A partir do momento que não é uma obrigação, quando a gente não precisa daquilo... a questão da necessidade, somente da prostituição, daí é válido - agora, a partir do momento que é uma escolha, acho que é mais em conta, né.
Você começou por escolha ou necessidade?
Necessidade.
Com quantos anos?
22
Por que escolheu essa profissão?
Na verdade não foi uma escolha. O preconceito, a discriminação são tão fortes, que o mercado de trabalho se fecha. São as portas de uma pessoa trans. Primeiro, a família. Muitas vezes a pessoa trans não é aceita. Segundo, a questão de identidade. E terceiro, o trabalho. Quando não se tem o mercado de trabalho, quando as portas são fechadas, tu tens que viver. Fazer alguma coisa pra conseguir se manter, viver, se vestir, comer. Então, o único jeito é se prostituir.
Você começou a fazer programa antes ou depois de cursar Letras Alemão na UFSC?
Antes, bem antes. Na UFSC, eu entrei em 2012; Na prostituição, já faz 10 anos que sou profissional do sexo.
O que te levou a cursar letras?
Então, eu tive a oportunidade, através da prostituição, de morar fora. Aí conheci alguns países, e a questão da cultura, da linguagem, de conversar uns com os outros, de viver uns com os outros, a forma como eu era tratada... Então, acabei gostando e acabei fazendo Letras Alemão.
Que oportunidade foi essa de ir pra outros países através da prostituição?
Uma amiga minha. Eu conheci uma menina aqui, ela perguntou se eu queria ir pra lá, se eu tinha um sonho, interesse. Aí eu disse que sim, que era o meu maior sonho. E daí ela pegou e falou "então ‘tá’, um dia eu vou te mandar o dinheiro e tu vais". E aí eu peguei e fui (risos). Eu fui louca, né. É um risco que tu estás correndo, mas a vida é um risco. Então resolvi arriscar e, graças a Deus, eu tive muita sorte. Conheci muita gente legal, conheci muita coisa, vivi muita coisa. Hoje eu falo dois idiomas, não fluente, mas me viro (risos), e isso pra mim é bom.
Você trabalha por conta própria ou pra algum cafetão?
Conta própria.
Quanto você cobra a hora?
É tudo relativo, depende do cliente, da situação, de tudo. O programa é de 80 a 150.
Por mês, consegue tirar quanto?
Não sei (risos). Administrar o dinheiro é coisa que não sei fazer. Mas já foi melhor, né Cafe? (risos).
E você vem toda noite?
Não, não é sempre. Venho sempre que posso.
Quantos clientes você tem por noite?
Olha, eu queria que, todo dia, toda vez que eu viesse, pudesse atender a uns 3, 4 (risos). Mas é difícil, é difícil...
E, no geral, tem um perfil de clientes específicos?
Casados. A princípio heterossexuais. “Homossexuais” (Cafe completa). É... (Fabi ri e depois responde). Não muito porque o gay gosta de menino, não de menina, e a nossa fisionomia é de menina. Mas às vezes acontece numa balada, mas aqui na rua, não. É difícil.
Você tem alguém pra sustentar?
Graças a Deus, não.
Qual foi a reação da sua família com a sua transição?
A minha aceitação foi bem melhor enquanto trans do que quando eu falei pra minha mãe que eu achava que era homossexual. Hoje, em relação à minha identidade, o meu contato com a minha mãe é bem maior do que antes.
E ela sabe que você faz programa?
Sabe, minha mãe é minha melhor amiga, graças a Deus.
Você tem alguma outra fonte de renda?
Não diretamente. Eu trabalho numa ONG de direitos humanos e, quando tem projeto, quando é financiado pelo ministério, a gente recebe.
Que ONG que é?
ADEH - Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade.
E com o curso de letras você pretende deixar de fazer programa?
Carol, eu acho que não. Não porque, na rua, é um risco muito grande, mas a gente aprende muito. Eu aprendi, principalmente, a questão do homem. Que o homem, pra mim, a gente vê que, na rua mesmo, eles são todos iguais, só muda mesmo o endereço. A questão de atitude é a mesma. Eles, quando estão com tesão, quando querem gozar, eles pegam uma hoje aqui, outra ali, pronto. Então, pra mim, é lucro quando vem um cara, que eu goste ou não, e me paga pra transar.
Você já sofreu alguma coisa com cliente que te tratou mal?
Já tive alguns “arranca-rabo”, mas nada muito grave.
Você sabe dizer o quê?
Ai, de não querer pagar e eu bater na cara dele, de botar ele no lugar dele. Que isso aqui não é uma brincadeira, a gente não está aqui brincando, isso é nosso trabalho, a gente vive disso, está aqui pra viver... então ele não tem esse direito de chegar aqui, fazer o programa e depois dizer "não tenho dinheiro". Mas, graças a Deus, não foi nada muito sério, foram poucas as vezes. Comigo.
E você sabe de amigas, ou de casos relatados na ADEH, de pessoas que passaram por agressões mais sérias?
Já, já teve algumas. “Algumas mesmo” (comenta Cafe). De briga, briga mesmo, troca corporal mesmo.
E tem clientes que insistem pra não usar proteção?
Sim, clientes que oferecem mais pra querer fazer sexo sem preservativo. Tem de tudo. Tudo na vida tem, Carol. Aquele ditado que diz que "à noite, todo gato é pardo", isso é bem real. Todo gato é pardo à noite. Tudo pode. Tudo é permitido, entre aspas, à noite.
E em relação a você ser mulher trans, você já presenciou casos fortes de não aceitação e discriminação?
O ser humano é escroto, mas isso tem a ver com nossa sociedade, porque a gente é criado assim. Sem querer, a gente comete machismo, comete erro, a gente é preconceituoso por mais que diga que não. A gente tem alguma coisa que a gente pisa na bola. Por exemplo, hoje a gente sofreria bem menos se não tivessem tirado a discussão de gênero na escola. Mas parece que é justamente isso que eles querem... Na verdade, acho que é isso que eles querem: que a gente seja burra, ignorante, que a gente se mate a si próprio... E eles lá com a mãozinha no bem bom, recebendo muito.
Com quantos anos você se assumiu mulher trans?
Com 22.
Foi na época que você começou a fazer programa?
Foi. Dos meus 15 aos 18, eu achava que eu era homossexual, eu tinha essa ideia. Daí eu assumi pra minha mãe minha homossexualidade, mas me olhava no espelho e via que não era aquilo, que faltava alguma coisa. E foi quando tive contato com a primeira trans, e eu vi que eu poderia ser como ela, bonita, feminina, inteligente... Eu trabalhava num salão dos meus 18 aos 22, quando comecei a iniciar o tratamento hormonal, e foi uma transição muito rápida pra qual o salão não estava preparado. Daí eles me mandaram embora. Lá eu tinha carteira assinada, trabalhava na recepção... e eu não achei outro meio - foi quando acabei iniciando a prostituição. Foi forçado, não foi uma escolha como hoje. Hoje, se eu quero vir trabalhar, eu venho, se não quero, não venho. Tem meninas que têm que vir todo dia. (Cafe se manifesta, dizendo que ela tem que estar toda noite ali).
Com o curso, o que você pretende fazer?
Em relação à Universidade, é bem complicado. Eu tive bastante desilusão com o curso. Agora eu pretendo fazer o ENEM de novo e tentar Ciências Sociais. Era pra eu estar me formando no Alemão, mas eu tranquei o curso, fiquei dois anos fora, e agora que estou retornando.
Você sabe do projeto do deputado Jean Wyllys pra regulamentar a prostituição?
Mais ou menos, não sei de todo. Sei por cima, não com os pormenores.
Qual sua opinião sobre ele?
Olha, se vai ter os mesmos benefícios que um trabalho formal tem, por que não? Se vai ter férias, auxílio doença... Por que não? Eu acredito que, se tiver os mesmos benefícios, é válido, sim. Por exemplo, a menina que nem a gente, hoje, tem autonomia de pagar o INSS se quiser. Se for nesse sentido [de dar autonomia pros cafetões], aí sim, vai estar beneficiando a cafetinagem... E olha quem tem, hein [cafetinagem], infelizmente.
Você se considera uma mulher trans?
Na verdade, eu não gosto de rótulos. Mas se é pra rotular, eu sempre gosto do mais baixo, do mais perverso, do que as pessoas menos gostam: então me considero travesti. Que é o estigma, é o marginal, é o doente, é tudo o que não se sabe. Porque é muito fácil apontar, dizer, mas viver na pele são poucos que vivem. Quando eu estava vindo pra cá, eu estava conversando com uma amiga minha e ela disse que queria tirar uma dúvida. Ela perguntou: "nunca sei se, quando passo por uma menina trans ou travesti, eu cumprimento ou não". Aí eu disse "Por quê?" E ela respondeu "Ai, porque fico com medo de ela não gostar". Aí eu disse "Tá, vou te fazer uma pergunta: 'quando tu entras num mercado e alguém te dá bom dia ou boa tarde, tu não gostas?’". E ela disse "eu gosto". Aí eu falei "Então, é a mesma coisa".
Você acha que tem mais mulheres trans e travestis na prostituição que mulheres cis?
Na verdade tem porque, querendo ou não, é o único trabalho pro qual a porta não é fechada. Eu falo isso por experiência própria, já mandei vários currículos pra várias empresas, mesmo sendo graduanda, e não me dão emprego. Porque não tenho a retificação de nome, então é um impasse muito grande.
Retificação de nome é diferente de nome social?
Retificação do nome é o que te dá o direito de trocar o nome em certidão, em documento. E, aqui em Florianópolis, a gente tem um promotor, Henrique Limongi, que barra tudo o que é voltado à população LGBT. A gente até está com problema bem sério em relação a isso. Eu entrei com um processo judicial em 2011 e até hoje não consegui [a retificação do nome]. Casamento homoafetivo, mesmo tendo uma ação, uma preliminar, que permite, ainda assim o promotor indefere.
O que você acha que difere a sua situação, de não precisar vir todas as noites e conseguir cursar um ensino superior, da situação de outras mulheres trans, como a Cafe, que estava aqui e disse ter essa necessidade? (Nesse momento, Cafe havia ido embora).
Eu acho que é oportunidade, né.
Oportunidade em que sentido? Apoio da família, renda melhor…?
Também, também, com certeza. Por exemplo, em São Paulo, fizeram um projeto de ajuda de custo pras trans que voltaram a estudar. Se tivesse isso aqui, com certeza muita menina já não estaria na rua, porque, com o dinheiro que ia estar ganhando, estaria em casa, estudando, fazendo alguma coisa, como muita gente da UFSC faz. Eu acredito que o mercado de trabalho é o mais difícil, porque muitas meninas estão na prostituição porque o mercado não permite, não aceita.
Na UFSC, você sofre muito preconceito?
No começo, sofri. Hoje é mais tranquilo, até porque, hoje, a UFSC tem tido uma remessa de pessoas trans bem grande. Se não me engano, é a universidade que mais tem pessoas trans no Brasil. Então, hoje não, mas no início sofri com a questão do nome, de não quererem respeitar meu nome social, sofri com a questão do banheiro… Ainda!
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